Causos de uma cidade amaldiçoada no sertão

17 dezembro 2024


Diz a crença popular que, na época da fundação de Manairama, um padre amaldiçoou o lugar durante uma missa. Essa condenação parece mesmo ter trazido consequências, porque não é difícil esbarrar em situações naturalizadas de violências, negligências, preconceitos sociais, desigualdades econômicas e corrupção política. 

Até mesmo o clima se assemelha a um castigo dos céus, por sujeitar os moradores e os animais à fome. Porém, a região, de vez em quando, mostra-se mais como uma benção repleta de gente que se recusa a desistir apesar de todos os problemas.

É com esse cenário que Raimundo Sales lança um livro sobre as pessoas de uma cidade de interior no semiárido nordestino. Com capítulos curtos, as trajetórias desses moradores são contadas por meio de uma linguagem coloquial, parecida com as conversas de um grupo de idosos na calçada ou de uma roda de amigos que se diverte na praça após ir à igreja no domingo.

Os protagonistas formam uma teia de relações complexas representativas das experiências vividas em Manairama: há o bêbado, sempre pedindo cachaça ao povo; a família de pequenos agricultores que sofre para colocar comida na mesa; o jovem que se muda para o Sudeste em busca de ascensão socioeconômica; a “doida” e cuidadora dos animais abandonados; o comerciante que enriqueceu; entre muitos outros. Todos eles desafiam os limites de onde nasceram à medida que também flexibilizam as fronteiras entre o urbano e o rural.

Seu Chico Morais adquiriu um Ford 1929. O povo só andava na região a pé, de jumento ou a cavalo. Se quem tinha um cavalo já era considerado rico, imagine quem tinha carro. As pessoas que andavam por tais caminhos, ao avistá-lo fazendo barulho, soltando fumaça e levantando poeira – no meio de juremas, catingueiras, pereiros, favelas e imburanas completamente sem folhas -, elas corriam, e muitas se feriam nos espinhos e nas pedras no chão. (Manairama, p. 60)

Com apoio das ilustrações de Marcos Aurelio, o autor destrincha as adversidades de uma população do Seridó Potiguar, mas que reverbera em qualquer outra cidade do país. Mesmo ao abordar contextos difíceis, Raimundo Sales reforça a capacidade do brasileiro de ser feliz. Se nasceram numa cidade “amaldiçoada” - cujo termo é uma crítica à visão sobre o Nordeste -, os moradores encontraram motivos para usufruir da vida por meio de arte, humor, relações de afeto e fé.


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